quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Normatizar a Umbanda?


Grande parte da fraqueza das religiões afro-brasileiras
advém de sua própria constituição como reunião não
organizada e dispersa de grupos pequenos e quase
domésticos, que são os terreiros. (PRANDI1)

Em meu último post, deixei um “gancho” para esta nova reflexão. Diante dos atuais movimentos mundiais e os alertas que me passam pela mente com o que pode vir a acontecer (e o que já acontece de forma interna) com a Umbanda, creio oportuno, mas, ao mesmo tempo, deliciado e complexo, abordarmos a questão de uma orientação político-gestora para a religião.

Tenho lido bastante a respeito do assunto e minha cabeça tem dado muitas voltas. Meus irmãos de fé devem até me achar “chato” de tanto tocar nas mesmas teclas (pedido de perdão público a todos). Entretanto, a verdade é que devemos começar a fomentar algumas discussões no sentido de verificar como seria possível estabelecerem-se regras para a religião.

Antes que eu vire o alvo das pedradas, gostaria de dizer que tudo aqui ainda se insere no rol de um brainstorm. Nada fechado ou taxativo, inclusive porque, carecemos de um longuíssimo caminho de fundamentações e acertos entre os umbandistas.

Vejamos algumas considerações antes das conclusões:


  • A Umbanda não tem dogmas.
  • Não há um poder central que reja a religião.
  • Há diferentes práticas e formas de entender a religião.
  • Não há um consenso sobre uma nomenclatura que defina a Umbanda (ainda é branca, omolocô, traçada, etc).

Perguntas, baseadas em observações e percepções, surgem e esbarram nas considerações acima:


  • Quantos terreiros de Umbanda existem no Brasil?
  • Como se abre um terreiro?
  • Quem diz se uma casa é de Umbanda ou não?
  • Qual é o limite entre os fundamentos da Umbanda e práticas não-umbandistas?
  • O que outorga um médium a ser dirigente espiritual?

Não pretendo responder as questões, mas acredito que possa a ser um fio de meada que estamos precisando puxar.

No texto anterior, referi-me à “Carta Magna” que alguns segmentos da religião propuseram. Ato louvável de um direcionamento e convergência que, certamente, busca encontrar determinadas respostas que aqui expus. Porém (sempre há um porém), não me parece que o documento tenha resolvido todas as questões que vivenciamos como praticantes da religião. Aventuro-me a perguntar ainda:


  • Todos as diferentes formas de praticar a Umbanda fizeram parte do estudo? Se não temos um mapa completo de como a religião está em todo o país (e também no exterior), provavelmente a resposta à pergunta não pode ser afirmativa.
  • O que deve conter um documento que busque assegurar legalmente as casas umbandistas, se não temos uma única definição?
  • Não há um livro sagrado, não há amarras, mas há alguns desmandos que têm assustado os adeptos da religião. Como conter isto?

Novamente digo: a solução não é nada simples e nem imediata. Há a necessidade de se criar uma comissão que avalie quais as necessidades para a elaboração de um documento (a expressão “normatizar” me arrepia) que resguarde a religião sem ofender ou criar tensões discriminatórias de tantos e tantos terreiros espalhados pelos quatro rincões do país e que, sabe-se lá quanto tempo, são o oásis de paz e apoio de irmãos que buscam uma palavra amiga!

Imaginemos a absurda – e hipotética – situação: Após a criação e a aprovação de um documento que contenha as definições de rituais, crenças, conceitos, etc., em uma cidadezinha, no interior de um estado da federação, encontremos uma casa que se intitule como de Umbanda, mas que compreende a religião com algumas diferenças em relação à Carta (o nome dado ao documento parece-me dos problemas o menos relevante)? Fecha-se a casa? Coloca-se uma tarja vermelha na porta dizendo “esta casa não é de Umbanda”? O que fazer com os que depositam e depositaram sua fé no local por tanto tempo?


"A Umbanda é terreiro, é pé no chão."


Sem me alongar, pois meu objetivo precípuo nesta reflexão era somente levantar as questões, julgo que ações devem ser tomadas. Como já disse, urge a necessidade de formar um grupo de dirigentes e estudiosos sobre a nossa religião para começar a “rascunhar” os pontos relevantes a serem abordados em uma pesquisa consistente sobre a Umbanda. Após isto, o projeto deve ser legitimado junto aos órgãos políticos do país para que o respaldo do trabalho seja reconhecido como relevante.

Não proponho uma tese acadêmica. Seria contrapor-me a uma das bases mais importantes da religião: a simplicidade e objetividade. A Umbanda é terreiro, é pé no chão. Não somos mais vistos como uma seita que se esconde da polícia e nunca fomos uma prática para ludibriar. A Umbanda acolhe não o diploma ou o cargo que o homem possui. Nossa religião abraça o humano que é reflexo da luz do divino. Mas temos um corpo de adeptos capazes de estudar, discutir e propor soluções para a manutenção de nossa ancestralidade e garantir a permanência na contemporaneidade com o respeito e verdade que merecemos.

Eis o convite que, desde há muito, nosso hino nos faz: Avante filhos de fé/ Como a nossa Lei não há/ Levando ao mundo inteiro a bandeira de Oxalá.

É mais que hora de nos unirmos e mostrarmos que somos múltiplos, mas somos Uma só Banda. Na fé e na força de nossos Orixás, axé!


1 PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142004000300015. Acesso em 01/dez/2018.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

A Umbanda nos tempos de hoje

Sei do risco do tema, mas não posso evitar abordá-lo. Tentarei, na medida do possível, e sem “criar mossas”, apontar alguns pontos de vista, a partir do cenário atual, de como devemos ter atenção com relação aos rumos das nossas religiões com fortes influências de outras matrizes que não exclusivamente a cristãs.

O mundo, por diversos motivos que aqui não nos cabe apontar, encontra-se em um momento de tensão entre os blocos conservador e progressista. Muitos dos resultados estão presentes nas relações sociais e políticas. Vimos, faz pouquíssimo tempo, estes confrontos travestidos no binômio partidário de “esquerda” e “direita”. Acirradas opiniões, inflexíveis papéis, contendas familiares e de amizades em nome de informações tantas vezes distorcidas da realidade. O planeta globalizado “jorra” notícias que não se preocupam com comprovações, muitas vezes, e os homens, presos às telas de seus aparelhos, terminam tomando como totalitárias algumas fragmentadas verdades.

E o que isto tem a ver com as religiões?

Não é difícil encontrar os pontos de contato. Vejamos.

No passado, não muito distante, as relações de poder ou estavam diretamente nas mãos de determinados segmentos religiosos, ou algumas igrejas se encontravam muito imbricadas nas decisões políticas de países e na condução das “regras” de convivência social. Prova disto está em alguns livros sagrados que ditam normas e fazem seus seguidores crerem que os papéis sociais são esse, aquele ou aquele outro. Criaram-se sociedades machistas, algumas outras intransigentes, outras ainda perseguidoras em nome do divino, e por aí vamos.

No Brasil, a catequização dos “selvagens” e “insubmissos” trouxe dor, fugas, lágrimas e gerou preconceitos na mesma medida em que trouxe alianças para a Igreja católica que lhes foram muito úteis. Não é uma crítica, é uma constatação, como também vemos em grande parte do continente sul-americano!

O resultado (que também não é uma novidade para ninguém) foi o desenvolvimento de outras práticas religiosas de forma clandestina e sob repressão (inclusive do Estado).

Passou o tempo, o grito de conscientização e de “modernidade”, que diz não haver motivos para repressões e/ou perseguições, foi ouvido e buscou dar às religiões um espaço diante da legalidade, mas ainda muito distante da liberdade religiosa (que somente na teoria fica bonito falar).

Alinhavando o tema das tensões dos conceitos político-social de conservador e progressista (direita e esquerda e por aí vai), e sabedores de que nossas religiões por não possuírem dogmas (que por um lado não nos amarram, mas por outro, franqueiam a práticas incontroláveis), parece-me oportuno refletir sobre o futuro que nos aguarda.

Não é a apologia da necessidade de se criarem regras fixas através de dogmas, mas pensarmos em uma forma de como buscar a legitimação da religião.

Após os episódios políticos recentes no país, vi um grande número de pessoas se dizendo assustadas por acreditarem que alguns segmentos serão perseguidos ou, até mesmo, extintos. Não sou o arauto da sombra, porém não me considero um esperançoso fora da realidade. Há coisas que não podem mais voltar para trás.


"Problemas intrarreligiosos podem colocar em cheque a nossa liberdade de expressão."


A questão é: podemos vir a sofrer algum tipo de sanção? Óbvio que sim. Somente como exemplo rápido, a cidade do Rio de Janeiro tem visto alguns “desmandos” quando se tratam de religiões diferentes das professadas por determinados governantes. (novamente não é especulação, é fato!)

Outro ponto que corrobora com o alerta – e este tenho debatido muito com outros irmãos de fé – é a situação em que a Umbanda se encontra. Há uma relação tensa entre determinadas “escolas”, principalmente pela propagação de fundamentos e práticas através de cursos pagos e da internet de forma indiscriminada. De um lado, a explicação de que são somente informações (e não formação) e do outro a contestação pela tradição do tempo que se deve ter de terreiro (aprender fazendo com orientação dos mais velhos).

De qualquer forma (e já ouvi de pessoas de outras religiões), a percepção que alguns têm é que nossa religião ainda carece de organização. Muitos entendem que se há tanta diversidade em abordar e conduzir a religião é porque nossas práticas são primitivas e desprovidas de seriedade. A falsa impressão de que cada um faz o que quer a seu bel-prazer!

Sabemos que estamos longe disto, mas, os problemas intrarreligiosos podem colocar em cheque a nossa liberdade de expressão.

A solução não é simples e demandaria um processo de médio e longo prazo. Recentemente, li comentários e textos sobre a criação de uma “Carta Magna” da Umbanda. Vi que não houve (e ainda não há) unanimidade, mas me parece um começo.

Como a questão da Carta (ou outro documento normatizador ou, ao menos, que possa servir de legitimação) é complexo, convido-os ao nosso próximo texto.

O que hoje queria era iniciar uma reflexão sobre, diante do que estamos vivendo, como devemos prosseguir.

Na certeza de que a Umbanda é nossa bandeira – a bandeira de Oxalá –, fica aqui o meu pedido de maleme aos nossos orixás!

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Vozes de alerta para a Umbanda

O ritual é sempre, mais ou menos, o mesmo. Após ouvir, ler e me expressar em um debate de tema sensível, isolo-me em meus pensamentos. Assim foi esta semana quando, em um grupo do qual faço parte, a ideia central era: o que estão fazendo com a “nossa” Umbanda?

Nas discussões e nos posicionamentos (aliás, na grande maioria, muito lúcidos e realistas), vi diversas áreas em comum com minhas opiniões e percepções que externo agora em formas de questionamentos.

A Umbanda é plural. Um dos motivos de sua diversidade deve-se a não estar vinculada a dogmas e outros alinhavos organizacionais como outras religiões. Deixarei de lado as questões relacionadas às origens de suas matrizes escravas e os problemas advindos das relações sociais.

Quero centrar-me na ausência de um direcionamento normativo. Não há um livro sagrado, não há um único líder a ditar normas e nenhuma obrigatoriedade de responder a qualquer organismo político por suas práticas e formas de conduzir as cerimônias. Em suma, sem medo de errar, cada casa pode praticar a religião de sua forma.

Se por um lado não são amarras, por outro, vemos surgirem tantas diferentes maneiras de interpretação, que esbarramos (também sem o menor receio de estar afirmando uma bobagem) com alguns distanciamentos de fundamentos que nos levam a questionar se se trata mesmo de Umbanda.


"Em um terreiro, todos têm as mesmas condições de aprenderem tudo da mesma maneira e no mesmo tempo?"


Ouvi uma história tão séria e tão perigosa naquela conversar do grupo que me referi acima, que pareceu-me oportuno trazer à reflexão.

Um jovem procurou um Pai de Santo e lhe perguntou se ele poderia fazê-lo sacerdote também. O Zelador da Casa, calmo e cuidadoso, explicou que para que uma pessoa se torne Sacerdote há um caminho longo (de tempo e de aprendizado). Continuando a explicação, disse que já havia feito isso com outros Filhos e que requereria um processo diferenciado, com recolhimentos, rituais específicos, fases a serem vividas e vencidas, etc.

O rapaz agradeceu a atenção e se foi. Nunca mais o Pai de Santo viu o candidato a zelador. Passado algo como um ano, ano e meio, para a sua surpresa, o “velho” sacerdote deparou-se com um novo dono de terreiro. Sem que seja surpresa nenhuma para o leitor, era aquele novato que havia buscado o templo pedindo para se tornar Pai de Santo.

Sem entrar nos meandros de uma análise particular, se o jovem trazia bagagem, se era sua missão, ou outro aspecto qualquer, o que o episódio suscitou em todos nós foi como conceber “cursos para formar médium”?

Em outros textos também apresentei alguns questionamentos sobre isto e, provavelmente, de forma veemente, demonstrei minha inquietação com algumas consequências que a modernidade tem trazido para a “raiz” da religião. Se a rede mundial de computadores facilitou muita coisa, também trouxe riscos como vemos de vídeos e “aulas” concedidas a qualquer pessoa sem o menor critério no que diz respeito à sensitividade. Para alguns basta pagar que recebem um certificado de magia, de compreensão de entidades, de estudo sobre orixás. Outros – procurando achamos – nem precisam “comprar” os cursos por serem grátis. Fala-se sobre qualquer aspecto de trabalhos para atrair amor, conseguir dinheiro, afastar “inimigos”, e um sem-fim de temas.

Permitam-me perguntar (será que estou sendo radical?): em um terreiro, todos têm as mesmas condições de aprenderem tudo da mesma maneira e no mesmo tempo? A máxima de que todo homem é sensitivo justifica o fato de que do outro lado da tela do computador, ele pode se “formar” como médium?

Haverá os que dirão que tais cursos têm por finalidade somente informar. Que a questão é o conhecimento e que a formação é no terreiro. Lindas as explicações, mas muito longe da realidade. Quem controla esta “verdade”? Quem pode afirmar (e acompanhar) que a pessoa que realiza um curso depois não se intitula sacerdote, mago, etc.?

Onde anda o cambono que aprende, dia a dia, com o Preto Velho? Cadê as “famílias de Santo” que, com alegria e disposição, vão ao terreiro para limpar o congá, para preparar a casa para a gira ou para conversar com a “Mãe” e aprender a tradição e as histórias? E o mais sério, onde estão as histórias que os próprios médiuns podem contar das coisas vividas em sua trajetória espiritual?

Irmãos, não proponho, jamais, um ato de repressão, pois caso contrário, agiria como os mesmos algozes que perseguiram nossos ancestrais. Meu único objetivo é registrar a necessidade de estarmos atentos para determinados rumos que alguns estão dando a nossa religião. Não tenho uma solução mágica para o problema, mas continuo a crer em uma forte maneira de combater desmandos e arvorados “donos” dos rituais religiosos: a propagação das ideias (inclusive, pelos mesmos meios que vendem a religião).

Não podemos nos calar diante do que nos parece equivocado. Não somos detentores da verdade, mas, pelo que pude ver nas falas de meus irmãos de fé, há algo que precisa ser feito. Assim, que nossas vozes ecoem aos quatro cantos para garantir a beleza de uma Umbanda variada e multicolorida, porém coerente com suas bases amor e caridade. Eis o nosso alerta!

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Os donos da Umbanda

Tenho lido, sem assombro, pelas redes sociais, muitos comentários, verdadeiros posicionamentos, sobre “na Umbanda não existe isso”, “A Umbanda não faz assim”, “na verdadeira Umbanda é desta forma”… e por aí vai…

Senhores “donos” da Umbanda, mantenham a calma!

Como se fosse necessário relembrar-lhes todas as agruras que nos perseguem desde sempre. Se sofremos (presente e pretérito) com os olhares atravessados de outras expressões religiosas que, não nos conhecendo em essência, não nos toleram, será que “dentro” da mesma crença precisamos desviar das fulminantes miradas?

Entender (não disse aceitar) o preconceito inter-religioso, até entendemos justamente pela falta de vontade de “eles” quererem nos conhecer, entretanto (ah, esses “entretantos”!!!!), viver tais asseveradas críticas dos que se dizem irmãos de fé é duro demais.

Que instituição, seja ela da ordem que for (política, religiosa, cultural), pode permanecer se é minada desde dentro?

Nossas religiões, não podemos negar, possuem bases em matrizes muito ricas em histórias e mitologias. São multicoloridas as partes que nos integram. Se assim o é, como querer encarcerar em uma lista limitada de itens como um dogma e seu caráter indiscutível? Se somos capazes de notar os malefícios que regras incontestáveis trazem para outras religiões, seria lúcido querer fazer o mesmo com as doutrinas que, por seu histórico de formação, já sofreram tantas perseguições e aplastamentos?

Não se trata de propagar a liberdade sem freio do famoso “cada um faz o que quer”. Não! O alerta é para buscarmos, em um diálogo fraterno, considerar, respeitar e inclusive trazer propostas de alinhamento.

Como umbandistas, não podemos nos afastar dos pilares mais lindos que aprendemos com a espiritualidade: RESPEITO e HUMILDADE.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

O presente

Bem sabemos que o ensinamento pode variar na sua origem (geográfica ou filosófico religiosa), mas jamais deve se restringir por causa disto.

Não é o seu berço que proíbe o público que pode aprender e sim o limite de compreensão de quem se porta inflexível!

Tal introdução tem por objetivo justificar os motivos pelos quais nossa reflexão não tratará especificamente de Umbanda, mas, por ser bem aplicada por todo e qualquer umbandista que busque o seu crescimento, pareceu-me oportuno contar-lhe uma bonita parábola vinda do oriente.

Conta-se que um certo dia, Siddhartha Gautama – já iluminado, ou seja, já considerado o Buddha – estava sentado com os seus discípulos a sua volta. Aproximou-se deles um homem que havia escutado as histórias sobre aquele ser iluminado e como Ele ensinava sobre a não-identificação do ego e, com isso, o não-sofrimento.

Desconfiado e duvidando de tamanha santidade, o desafiador empertigado sentou-se também junto a todos e começou a proferir palavras ofensivas para o Senhor Buddha. Insultava-o com as mais duras e grotescas frases.

Todos, pelo inusitado da situação, estavam perplexos e estupefatos.

Acabadas as ofensas, cansado de tanto falar e xingar, o homem se calou. Um dos devotos, que presenciou a situação, dirigiu-se ao Mestre e lhe perguntou:

- Mas o Senhor não vai dizer nada? Este homem lhe ofendeu.

Sereno e demonstrando calma na voz, o Iluminado respondeu:

- A quem pertence um presente que você não quer receber?

O discípulo lhe disse:

- Ao dono do presente já que não se quer recebê-lo.

- Pois então. É exatamente isto. Como não reconheço como para mim o que este senhor trouxe, não o recebo. Não é meu!

Dizem que, envergonhado do que havia feito, o ofensor largou tudo na vida e passou a seguir o Buddha.

Trocando em miúdos, o que podemos depreender deste conto?

Quantas vezes nos enredamos diante daqueles que têm a capacidade de nos desestabilizar? Quantas vezes nos deixamos levar pelas provocações e terminamos tão iguais aos ofensores?

Não é uma tarefa fácil! Não, não é! Não é difícil “entrar na vibe” (como dizem hoje em dia) do desassossego, da fúria, das disputas e das discussões. Mas, a pergunta que gostaria de deixar para todos nós, que batemos no peito que somos umbandistas e aprendemos sobre fraternidade, caridade e amor, é:

Qual o nosso esforço em nos tornamos pessoas melhores? Até quando, diante das provocações – muitas vezes infundadas e tolas – responderemos da mesma maneira e gastaremos a nossa energia, quando poderíamos empregá-la de forma mais digna do título que atribuímos a nós mesmos como filhos de Zambi?

Pensemos nisto quando o ofensor vier nos provocar. Vale a pena? Somos iguais àquele que diz os impropérios?

Que Pai Oxalá nos abençoe a todos!

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Pai de santo de aluguel


Dê um peixe a um homem faminto e você o alimentará por um dia. Ensine-o a pescar, e você o estará alimentando pelo resto da vida.
                                               Provérbio Chinês.

Em tempos de terceirização dos serviços, as religiões – infelizmente – não escaparam. Vemos com tristeza que muitos sensitivos, agraciados pelos dons divino das percepções, colaboram para que outros irmãos permaneçam em condições de pedintes e acomodados. Por pensarmos que as razões são diversas, pretendemos aqui somente abordar as que nos parecem mais graves.
Não é desconhecido para nós que existem “serviços” de atendimentos espirituais das formas mais diferentes através das ferramentas tecnológicas que granjeiam pela rede mundial de computadores. Até aí, o mundo cibernético permite liberdades, entretanto, o sério da questão é: existem pessoas que acreditam nessas “verdades” e colocam (por desespero, solidão, falta de esclarecimento espiritual, etc.) suas vidas e decisões nas orientações ali encontradas. Quem não ouviu dizer de leitura de tarô por um processo randômico de seleção de cartas? Ou ainda (se não conheceram, conto-lhes), o que dizer das congregações que se prontificam a “acender” velas virtuais para os seus pedidos de socorro?
Estas práticas não são tão modernas, elas são modernizadas pela tecnologia. Digo isto baseando-me em minha própria experiência sensitiva. Muitas vezes, na tentativa de ajudar àqueles mais aflitos, disponibilizei meus contatos (fora do templo onde trabalhava) para que, em uma emergência, pudesse colaborar. Mas a medida e o controle do acesso é uma linha muito tênue e estabelecer o grau de necessidade também. Estes fatos fizeram com que algumas pessoas começassem a me telefonar (em qualquer hora do dia ou da noite), enviassem e-mails e mensagens escritas nos celulares, sempre com uma “consulta” a algo “muito sério” (segundo o conceito do pedinte).
Sempre orientado por meus mentores, comecei a “ouvir” deles que deveria ter cuidado com “tele-atendimento” e que fazia parte do meu aprendizado como médium saber dosar e ensinar aos irmãos como crescerem como seres e como conseguirem estabelecer a forma direta de contato entre eles e a divindade.
Meus questionamentos residem em pensar sobre quais os motivos que levam os sensitivos a colaborarem com a passividade dos “aflitos”. Quando se tem um canal aberto entre o sensitivo e o “consulente”, será que estamos realmente ajudando-o ou repetimos a antiga história contida no provérbio chinês que abre a nossa reflexão?
Quantas vezes, em conversa franca e fraterna, disse às pessoas que pediam ajuda que fossem ao terreiro para conversar com o Preto Velho. Na grande maioria das vezes, as respostas são muito parecidas: falta de tempo, empecilhos, dificuldades de ir, etc. Será mesmo? Ou será que é mais cômodo pedir ajuda por celular ou e-mail e receber resposta?
Não estou sendo, em nada, exagerado, por uma simples razão: vivencio até os dias de hoje tais situações. Entender entre uma situação emergencial e um comodismo (alimentado pelo próprio médium) reside o aprendizado.
Uma sugestão para aqueles que passam pelas mesmas situações. Experimentem dizer para alguém que busca respostas prontas: “Vai lá no templo para uma conversa” e comecem a colecionar as respostas.
Tudo isso me leva a concluir, ainda que não de forma taxativa ou definitiva, que somos os responsáveis pela colaboração do estado de pedinte dos irmãos. Questiono-me: será que há algo de uma vaidade velada que nos diz que somos bons médiuns e é por isso que as pessoas confiam em nós e temos “o dever” de atender? Será que nos perguntamos se aquele que acorre a nós está mesmo disposto a mudar sua condição diante da vida ou está acomodado com “tenho um pai de santo de aluguel” para resolver os meus “problemas”, basta falar com ele.
Reitero: não estou sendo duro. Estou refletindo sobre toda a finalidade da religião que é ligar a criatura ao Criador. Até onde não estamos nos deixando levar?
Espero, sinceramente, que eu não recaia nas armadilhas do ego que, de forma muito esperta, disfarça-se das desculpas da solidariedade e me fazem ser menos irmão que ajuda a crescer do que aquele que dá as respostas. E como médium, que resposta onipotente posso dar se tão humano sou a ponto de me equivocar na real medida do auxílio?
Considere a sugestão de começar a pedir para as pessoas irem ao templo, da mesma forma que você vai, dizendo-lhes o que justamente você vai lá buscar.
Esforço, dedicação e convivência são grandes mestres das congregações religiosas. Não prive os demais desta oportunidade.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Nossa voz desfaz preconceitos


Uma pergunta feita, outro dia, por uma aluna de uma escola pública onde fui fazer uma palestra sobre as religiões de matrizes africanas resultou neste texto e que agora compartilho como minhas reflexões.
Falava sobre os fundamentos da Umbanda e no debate, a jovem, que deveria ter seus 16 anos, perguntou-me:
- Mas se as religiões que tem influência das matrizes africanas não cultuam o diabo (já que o diabo é uma criação cristã, como o senhor falou), por que veneram imagens com chifre, rabo e tridente?
(…)
As reticências eram o meu tempo de silêncio e o pensamento: “Ela tem razão!”
E por que digo que ela tem razão? Não somos só o que somos pelas nossas práticas e rituais internos, somos responsáveis pelo que conseguimos explicar – principalmente para os leigos – sobre quem somos, pensamos e cremos.
Aproveitando, aqui, o mesmo tema, um dia, enquanto navegava na internet, li uma discussão em uma rede social onde a afirmação inicial solicitava ao “povo de fé” que evitasse cantar pontos falando no diabo (sabemos que exitem pontos assim). Nem preciso dizer que os argumentos e contra-argumentos foram os mais diversos possíveis e nos níveis mais díspares existentes.
Pois bem, aliando a pergunta da menina ao fato narrado acima, podemos continuar construindo a tese de que precisamos ser a voz que desfaz a ignorância do desconhecimento, pois se inclusive, dentro de nossas casas, muitos não conseguem entender algumas coisas, o que diremos de quem tem uma visão externa?
Prossigamos!
Se ancoramos nossa argumentação somente pelo viés cultural, isto justificaria, pelo lastro da tradição, que devemos manter alguns pontos cantados, ainda que eles façam menção a uma figura diabólica associando-a às entidades de Esquerda.
Entretanto, se queremos desfazer o conceito deturpado que as pessoas têm a nosso respeito, não seria o momento de repensarmos como nos configuramos e o que representamos?
Por favor, não estou dizendo que devemos agir pelo medo e com isso refazer as bases da religião. De forma alguma! A proposta aqui é refletirmos sobre quem somos em pleno século XXI e como queremos nos fazer respeitar.
Qual seria a resposta para a estudante do ensino médio que lançou no ar a pergunta? Deveria o palestrante entrar em questões minuciosas sobre todo o campo espiritual da Umbanda? Seria o caso para uma plateia de adolescentes? Não deveria responder a um fato notório (basta ver nas portas das casas que vendem produtos ligados às religiões de matrizes africanas as figuras que guardam as suas entradas)?
Cremos, firmemente que adequar o discurso ao interlocutor é sempre o mais aconselhável. Deixar “em branco” a resposta poderia parecer que, sem argumentos, a sentença de que “o diabo” não é cultuado na Umbanda era uma falácia e o palestrante estava mentindo.
Como o meu discurso da formação cultural de nossas religiões, desde os tempos do Brasil colônia foi o de que era preciso se adequar à situação para a manutenção das crenças e sobrevivência, os negros escravizados buscavam soluções para as proibições de seus cultos e imposições da fé “branca”. O sincretismo foi a base das minhas explanações para que pudessem entender que a resistência se dava não pelo enfrentamento (a corda arrebenta do lado mais fraco e os negros saíram perdendo com isso). A dor da chibata no lombo criou artifícios que buscavam minimizar a repressão.
Eis o meu raciocínio para responder à menina: Desde sempre, na história da humanidade, o oprimido aprende a disfarçar para se proteger. Com o arcabouço formado da tensão entre o que proíbe e o que é proibido. Desta forma, uma das soluções que os adeptos das religiões perseguidas encontraram para salvaguardar os seus ritos e liberdade de crença foi a de se valer das mesmas armas que o déspota usavam. Não eram seitas que cultuavam o “diabo”? Não faziam o mal? Não criavam pactos com aqueles do submundo de rabo e tridente? Pois bem… não se acredita naquela entidade, ela não vem das terras africanas, não se busca afinidade com “ele”, mas já que assim o querem, e no intento de proteger as casas, por que não colocar essas figuras logo na entrada para “afugentar” os que temem o fogo do inferno?
Não foi difícil associar algumas características de alguns orixás africanos, como Exu, com a visão eurocentrista do bem e do mal. Ainda que nas nações e cultos a compreensão dos conceitos bem e mal fosse diferente das culturas que eram impostas como puras e corretas, era preciso buscar trincheira. A chave do problema, tal como no começo a associação de Jesus a Oxalá, foi a de os guardiões e sentinelas dos planos ganharem uma forma que imporia respeito pelo medo e transparecer a mensagem de que estavam ali para “barrar” quem quisesse fazer algo contra aquela tenda.
Nós, mais inteirados da profundidade do que são as nossas religiões, sabemos que há outros quesitos como o “disfarce” (plasmados como formas maltrapilhas) para poderem transitar em regiões mais densas sem serem percebidos e poderem cumprir missões de resgate e/ou condução de outros para lá. Ou então, como sabemos, infelizmente, existem os que carentes de mais escrúpulos, dentro dos próprios terreiros, ilês, cabanas etc. se predispõem, a qualquer custo e com qualquer benefício material, a atitudes pouco divinas. Mas isto não se restringe a um credo, localiza-se no caráter do ser humano e cria dívidas para os que um dia serão cobrados, sabe-se lá de que forma? Porém, tal assunto não vem ao caso!
Toda a minha reflexão tem o único propósito de pararmos um pouco diante do tanto que sofremos, ao longo do tempo, e repensarmos como podemos agir frente a intransigência e a intolerância. Devemos manter nossa cultura trancada e encerrada nos preceitos ocultistas em todos os temas e assuntos? Ou podemos, de acordo com o que os tempos atuais são capazes de compreender, fazer valer a nossa voz? Toda ignorância é desfeita no momento em que a luz do esclarecimento surge. É um convite: Pensemos!

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O bom médium e o médium bom

Como de costume, a insônia fez-me abrir os olhos às 3 horas da manhã. “Escutando” ao longe o toc-toc da bengala, antevia quem se aproximava. Como soe acontecer, Pai Joaquim se senta no seu banquinho ao lado da cama e me pergunta1:
- Filho, qual é a diferença entre o médium bom e o bom médium?
O silêncio era proposital da parte dele. Esperava que eu respondesse. Mediante o meu silêncio, também proposital que significava “não sei se eu sei”, o negro velho voltou a falar:
- Nem todo bom médium é um médium bom.
Diante da sentença, o meu silêncio aumentava, agora pela questão de buscar mais tempo para refletir sobre o que tinha ouvido. Assim sendo, ele prosseguiu:
- Um bom médium é aquele que se entrega completamente ao serviço espiritual para que as entidades de luz possam “baixar” em uma gira. Ele incorporado deixa que o espírito que se acopla ao seu corpo energético conduza o trabalho de forma plena. O bom médium é uma referência para a assistência que acorre a um terreiro em busca de ajuda. “Aquele Caboclo é muito bom”; “Nossa, como a Preta Velha de fulana é certeira!”, estas e outras frases indicam o bom médium. O bom médium é um aparelho com alto grau de sensitividade.
- Já o médium bom é aquele que está para além da “perfeita incorporação”. O médium bom não está restrito ao momento em que está vestido de branco no terreiro, no dia de sessão.
Nem sempre o bom médium dá bom testemunho do que aprende na Umbanda. Em compensação, o médium bom é uma referência para todos que o conhecem como exemplo de pessoa íntegra, amorosa, fraterna, paciente e compreensiva. O médium bom é o que faz com que pessoas externas à religião formulem a seguinte frase: “A Umbanda, considerando como o fulano é, deve ser, realmente, uma religião que pratica o bem e faz crescer os seus adeptos.” O médium bom é o reflexo, na Terra, daqueles que vêm de Aruanda. O médium bom é um verdadeiro ser humano (na mais linda plenitude da expressão).
E a pergunta que encerrou a conversa foi: Você quer ser uma pessoa reconhecida porque que é um médium muito bom na tarefa de dar passagem às entidades ou prefere ser um médium reconhecido por ser um homem bom?


1 Como autor do texto, arbitrariamente, resolvi “traduzir” a fala do Preto Velho para um discurso mais próximo à linguagem normativa.