Uma
pergunta feita, outro dia, por uma aluna de uma escola pública onde
fui fazer uma palestra sobre as religiões de matrizes africanas
resultou neste texto e que agora compartilho como minhas reflexões.
Falava
sobre os fundamentos da Umbanda e no debate, a jovem, que deveria ter
seus 16 anos, perguntou-me:
-
Mas se as religiões que tem influência das matrizes africanas não
cultuam o diabo (já que o diabo é uma criação cristã, como o
senhor falou), por que veneram imagens com chifre, rabo e tridente?
(…)
As
reticências eram o meu tempo de silêncio e o pensamento: “Ela tem
razão!”
E
por que digo que ela tem razão? Não somos só o que somos pelas
nossas práticas e rituais internos, somos responsáveis pelo que
conseguimos explicar – principalmente para os leigos – sobre quem
somos, pensamos e cremos.
Aproveitando,
aqui, o mesmo tema, um dia, enquanto navegava na internet, li uma
discussão em uma rede social onde a afirmação inicial solicitava
ao “povo de fé” que evitasse cantar pontos falando no diabo
(sabemos que exitem pontos assim). Nem preciso dizer que os
argumentos e contra-argumentos foram os mais diversos possíveis e
nos níveis mais díspares existentes.
Pois
bem, aliando a pergunta da menina ao fato narrado acima, podemos
continuar construindo a tese de que precisamos ser a voz que desfaz a
ignorância do desconhecimento, pois se inclusive, dentro de nossas
casas, muitos não conseguem entender algumas coisas, o que diremos
de quem tem uma visão externa?
Prossigamos!
Se
ancoramos nossa argumentação somente pelo viés cultural, isto
justificaria, pelo lastro da tradição, que devemos manter alguns
pontos cantados, ainda que eles façam menção a uma figura
diabólica associando-a às entidades de Esquerda.
Entretanto,
se queremos desfazer o conceito deturpado que as pessoas têm a nosso
respeito, não seria o momento de repensarmos como nos configuramos e
o que representamos?
Por
favor, não estou dizendo que devemos agir pelo medo e com isso
refazer as bases da religião. De forma alguma! A proposta aqui é
refletirmos sobre quem somos em pleno século XXI e como queremos nos
fazer respeitar.
Qual
seria a resposta para a estudante do ensino médio que lançou no ar
a pergunta? Deveria o palestrante entrar em questões minuciosas
sobre todo o campo espiritual da Umbanda? Seria o caso para uma
plateia de adolescentes? Não deveria responder a um fato notório
(basta ver nas portas das casas que vendem produtos ligados às
religiões de matrizes africanas as figuras que guardam as suas
entradas)?
Cremos,
firmemente que adequar o discurso ao interlocutor é sempre o mais
aconselhável. Deixar “em branco” a resposta poderia parecer que,
sem argumentos, a sentença de que “o diabo” não é cultuado na
Umbanda era uma falácia e o palestrante estava mentindo.
Como
o meu discurso da formação cultural de nossas religiões, desde os
tempos do Brasil colônia foi o de que era preciso se adequar à
situação para a manutenção das crenças e sobrevivência, os
negros escravizados buscavam soluções para as proibições de seus
cultos e imposições da fé “branca”. O sincretismo foi a base
das minhas explanações para que pudessem entender que a resistência
se dava não pelo enfrentamento (a corda arrebenta do lado mais fraco
e os negros saíram perdendo com isso). A dor da chibata no lombo
criou artifícios que buscavam minimizar a repressão.
Eis
o meu raciocínio para responder à menina: Desde sempre, na história
da humanidade, o oprimido aprende a disfarçar para se proteger. Com
o arcabouço formado da tensão entre o que proíbe e o que é
proibido. Desta forma, uma das soluções que os adeptos das
religiões perseguidas encontraram para salvaguardar os seus ritos e
liberdade de crença foi a de se valer das mesmas armas que o déspota
usavam. Não eram seitas que cultuavam o “diabo”? Não faziam o
mal? Não criavam pactos com aqueles do submundo de rabo e tridente?
Pois bem… não se acredita naquela entidade, ela não vem das
terras africanas, não se busca afinidade com “ele”, mas já que
assim o querem, e no intento de proteger as casas, por que não
colocar essas figuras logo na entrada para “afugentar” os que
temem o fogo do inferno?
Não
foi difícil associar algumas características de alguns orixás
africanos, como Exu, com a visão eurocentrista do bem e do mal.
Ainda que nas nações e cultos a compreensão dos conceitos bem e
mal fosse diferente das culturas que eram impostas como puras e
corretas, era preciso buscar trincheira. A chave
do problema, tal como no começo a associação de Jesus a
Oxalá, foi a de os guardiões e sentinelas dos planos ganharem uma
forma que imporia respeito pelo medo e transparecer a mensagem de que
estavam ali para “barrar” quem quisesse fazer algo contra aquela
tenda.
Nós,
mais inteirados da profundidade do que são as nossas religiões,
sabemos que há outros quesitos como o “disfarce” (plasmados como
formas maltrapilhas) para poderem transitar em regiões mais densas
sem serem percebidos e poderem cumprir missões de resgate e/ou
condução de outros para lá. Ou então, como sabemos, infelizmente,
existem os que carentes de mais escrúpulos, dentro dos próprios
terreiros, ilês, cabanas etc. se predispõem, a qualquer custo e com
qualquer benefício material, a atitudes pouco divinas. Mas isto não
se restringe a um credo, localiza-se no caráter do ser humano e cria
dívidas para os que um dia serão cobrados, sabe-se lá de que
forma? Porém, tal assunto não vem ao caso!
Toda
a minha reflexão tem o único propósito de pararmos um pouco diante
do tanto que sofremos, ao longo do tempo, e repensarmos como podemos
agir frente a intransigência e a intolerância. Devemos manter nossa
cultura trancada e encerrada nos preceitos ocultistas em todos os
temas e assuntos? Ou podemos, de acordo com o que os tempos atuais
são capazes de compreender, fazer valer a nossa voz? Toda ignorância
é desfeita no momento em que a luz do esclarecimento surge. É um
convite: Pensemos!