terça-feira, 1 de maio de 2018

Nossa voz desfaz preconceitos


Uma pergunta feita, outro dia, por uma aluna de uma escola pública onde fui fazer uma palestra sobre as religiões de matrizes africanas resultou neste texto e que agora compartilho como minhas reflexões.
Falava sobre os fundamentos da Umbanda e no debate, a jovem, que deveria ter seus 16 anos, perguntou-me:
- Mas se as religiões que tem influência das matrizes africanas não cultuam o diabo (já que o diabo é uma criação cristã, como o senhor falou), por que veneram imagens com chifre, rabo e tridente?
(…)
As reticências eram o meu tempo de silêncio e o pensamento: “Ela tem razão!”
E por que digo que ela tem razão? Não somos só o que somos pelas nossas práticas e rituais internos, somos responsáveis pelo que conseguimos explicar – principalmente para os leigos – sobre quem somos, pensamos e cremos.
Aproveitando, aqui, o mesmo tema, um dia, enquanto navegava na internet, li uma discussão em uma rede social onde a afirmação inicial solicitava ao “povo de fé” que evitasse cantar pontos falando no diabo (sabemos que exitem pontos assim). Nem preciso dizer que os argumentos e contra-argumentos foram os mais diversos possíveis e nos níveis mais díspares existentes.
Pois bem, aliando a pergunta da menina ao fato narrado acima, podemos continuar construindo a tese de que precisamos ser a voz que desfaz a ignorância do desconhecimento, pois se inclusive, dentro de nossas casas, muitos não conseguem entender algumas coisas, o que diremos de quem tem uma visão externa?
Prossigamos!
Se ancoramos nossa argumentação somente pelo viés cultural, isto justificaria, pelo lastro da tradição, que devemos manter alguns pontos cantados, ainda que eles façam menção a uma figura diabólica associando-a às entidades de Esquerda.
Entretanto, se queremos desfazer o conceito deturpado que as pessoas têm a nosso respeito, não seria o momento de repensarmos como nos configuramos e o que representamos?
Por favor, não estou dizendo que devemos agir pelo medo e com isso refazer as bases da religião. De forma alguma! A proposta aqui é refletirmos sobre quem somos em pleno século XXI e como queremos nos fazer respeitar.
Qual seria a resposta para a estudante do ensino médio que lançou no ar a pergunta? Deveria o palestrante entrar em questões minuciosas sobre todo o campo espiritual da Umbanda? Seria o caso para uma plateia de adolescentes? Não deveria responder a um fato notório (basta ver nas portas das casas que vendem produtos ligados às religiões de matrizes africanas as figuras que guardam as suas entradas)?
Cremos, firmemente que adequar o discurso ao interlocutor é sempre o mais aconselhável. Deixar “em branco” a resposta poderia parecer que, sem argumentos, a sentença de que “o diabo” não é cultuado na Umbanda era uma falácia e o palestrante estava mentindo.
Como o meu discurso da formação cultural de nossas religiões, desde os tempos do Brasil colônia foi o de que era preciso se adequar à situação para a manutenção das crenças e sobrevivência, os negros escravizados buscavam soluções para as proibições de seus cultos e imposições da fé “branca”. O sincretismo foi a base das minhas explanações para que pudessem entender que a resistência se dava não pelo enfrentamento (a corda arrebenta do lado mais fraco e os negros saíram perdendo com isso). A dor da chibata no lombo criou artifícios que buscavam minimizar a repressão.
Eis o meu raciocínio para responder à menina: Desde sempre, na história da humanidade, o oprimido aprende a disfarçar para se proteger. Com o arcabouço formado da tensão entre o que proíbe e o que é proibido. Desta forma, uma das soluções que os adeptos das religiões perseguidas encontraram para salvaguardar os seus ritos e liberdade de crença foi a de se valer das mesmas armas que o déspota usavam. Não eram seitas que cultuavam o “diabo”? Não faziam o mal? Não criavam pactos com aqueles do submundo de rabo e tridente? Pois bem… não se acredita naquela entidade, ela não vem das terras africanas, não se busca afinidade com “ele”, mas já que assim o querem, e no intento de proteger as casas, por que não colocar essas figuras logo na entrada para “afugentar” os que temem o fogo do inferno?
Não foi difícil associar algumas características de alguns orixás africanos, como Exu, com a visão eurocentrista do bem e do mal. Ainda que nas nações e cultos a compreensão dos conceitos bem e mal fosse diferente das culturas que eram impostas como puras e corretas, era preciso buscar trincheira. A chave do problema, tal como no começo a associação de Jesus a Oxalá, foi a de os guardiões e sentinelas dos planos ganharem uma forma que imporia respeito pelo medo e transparecer a mensagem de que estavam ali para “barrar” quem quisesse fazer algo contra aquela tenda.
Nós, mais inteirados da profundidade do que são as nossas religiões, sabemos que há outros quesitos como o “disfarce” (plasmados como formas maltrapilhas) para poderem transitar em regiões mais densas sem serem percebidos e poderem cumprir missões de resgate e/ou condução de outros para lá. Ou então, como sabemos, infelizmente, existem os que carentes de mais escrúpulos, dentro dos próprios terreiros, ilês, cabanas etc. se predispõem, a qualquer custo e com qualquer benefício material, a atitudes pouco divinas. Mas isto não se restringe a um credo, localiza-se no caráter do ser humano e cria dívidas para os que um dia serão cobrados, sabe-se lá de que forma? Porém, tal assunto não vem ao caso!
Toda a minha reflexão tem o único propósito de pararmos um pouco diante do tanto que sofremos, ao longo do tempo, e repensarmos como podemos agir frente a intransigência e a intolerância. Devemos manter nossa cultura trancada e encerrada nos preceitos ocultistas em todos os temas e assuntos? Ou podemos, de acordo com o que os tempos atuais são capazes de compreender, fazer valer a nossa voz? Toda ignorância é desfeita no momento em que a luz do esclarecimento surge. É um convite: Pensemos!