terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Querer, precisar e merecer

Três verbos que não são exclusivos para a compreensão dos irmãos de fé umbandistas. Entretanto, como nosso blog tem por objetivo colaborar com as reflexões sobre a religião de Umbanda, vejamos qual a relação existente entre eles, tomando como exemplo uma conversa entre um consulente e um preto velho.

Era dia de consulta e a moça, muito aflita, espera o momento de conversar com o preto velho. Chegada a sua vez, ela se senta diante da entidade, pede-lhe a bênção e desata a falar:

- Vô, estou muito nervosa. Preciso muito da sua ajuda para resolver um problemão!

- Que que “suncê” qué desse nego, fia?

- Tô querendo muito mudar de cidade, vô! Não aguento mais a minha família. Depois que minha mãe e meu irmão morreram, minha cunhada e meus sobrinhos têm me desprezado muito. Como eles moram perto de mim, vejo sempre da janela que eles fazem festas, reuniões de família e nem ligam que eu existo. Quero muito ir embora. Preciso, vô! “O que os olhos não veem, o coração não sente”, não é isso que dizem?

- Antes de carquer coisa, fia, suncê pricisa entender argumas coisas. Nem sempre o que se qué é o que se pricisa. Num é ansim não!

- Como não, vô? Eles me maltratam ignorando minha existência!

- Suncê é qui tá falando que eles martratam suncê. Vô explicá pra suncê! Das vez, quando arguma coisa incomoda a gente, a gente pricisa entendê purque ela incomoda, num é? Já se pirguntô purque eles faz isso? Num tô falando que eles num tem culpa não. Mas aqui, o importante é vê como suncê podi crecê como pessoa. Sinhá, quando insinava pros moreque da senzala sobre as coisa da bríblia, dizia: “se o seu dente mordi a sua língua, suncês arranca o dente fora?” E isso é vredade. Si arrancá o dente resolvesse a questão, todo mundo ficava era banguela pra num tê probrema, num é?

- Mas se eu me mudar, vou esquecê-los também e sofrer menos.

- Suncê tá certa disso?

- Bom, eu acho, né, vô!

- Oia só, nem sempre o que as pessoa qué é o que elas pricisa pra melhorá, sabia? Nem sempre o que se acha que se pricisa é o que elas merece. Suncê já parou pra pensar proquê Pai Oxalá corocó suncê ali naquele lugar? Num tô farando que num é pra saí. Tô farando que antes de pedir, pricisa escutá o coração e a alma pra senti o que realmente é importante.

A conversa levou um bom tempo, a jovem, secando as lágrimas, prometeu ao preto velho que durante a semana toda refletiria sobre a conversa para na outra consulta voltarem ao assunto.

O maior ensinamento da conversa entre o preto velho e a moça reside em um dos fundamentos mais bonitos da Umbanda: a melhora interna de cada um. Nossa religião não é comércio onde a pessoa chega, escolhe a mercadoria exposta e leva para o caixa para pagar. As entidades de luz que “baixam” em nossos terreiros nos ensinam, a todo tempo, que viver é buscar atravessar as dificuldades da vida, sem perder a fé! Nenhum umbandista pode ter em mente que, pelo simples fato de frequentar uma Casa santa, ele se livrará de tudo aquilo que “pensa” ser um estorvo.

A Sagrada Lei de Umbanda nos mostra nossas fragilidades, como também nos faz crer na força que temos. Com o cotidiano e a convivência do terreiro, vamos aprendendo que não somos infalíveis e muito menos inatingíveis, mas somos protegidos! As religiões espiritualistas não estão para nos servirem como “moeda de troca” segundo a visão equivocada de alguns. O contato com as forças das naturezas manifestadas nas formas plasmadas de entidades nos traz a oportunidade de autoconhecimento.

Esta é a razão mais clara de entendermos que nem sempre o que queremos é o que precisamos. Muitas vezes, para nosso maior aprendizado, o plano divino nos permite estar em situações onde enfrentá-las é mais importante do que nos afastar. O “livramento” reside na questão do merecimento que não é julgado por nós. Não temos condições, ainda, de sermos os juízes isentos das nossas próprias atitudes. Tudo fica a cargo e critério do divino.

Desta maneira é que as palavras do preto velho na conversa com a jovem aflita se fazem sábias. Antes de “pedir” qualquer coisa, devemos ter um exame criterioso sobre nossos dias para entender se o que “desejamos” é possível (e por que é) ou se “precisamos” estar (ou viver) algo e, ainda, se é de nosso merecimento!

Por isto, caro amigo, irmão do caminhar, antes de pisar no terreiro para pedir, ouça a sua alma e pergunte-se:

quero, preciso ou mereço.

Ninguém está dizendo que não lhe é facultado pedir. Estamos dizendo que é preciso estar preparado para vivenciar as experiências que a vida nos reserva com força, foco e fé!

Saravá, Umbanda. Axé, irmãos.

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